quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Apresentação

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
FACULDADE DE DIREITO
PROGRAMA DE GRADUAÇÃO EM DIREITO
DISCIPLINA: TEORIA GERAL DO ESTADO – TURMA B (2022.1)
DOCENTE: DOUGLAS ANTÔNIO ROCHA PINHEIRO

ÍNDICE 

1. Apresentação

2. Integrantes

3. O que é uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO)?

4. Necessidade da criação de uma lei específica de amparo às causas LGBTQIAP+

5. Não restrição de exercício da liberdade religiosa, desde que não ocorra discurso de ódio

6. Relação entre crimes contra a comunidade LGBT e a Lei de Racismo

7. Voto - Ministro Celso de Mello

8. Voto - Ministro Edson Fachin

9. Voto - Ministro Alexandre de Moraes

10. Voto - Ministro Luís Roberto Barroso

11. Voto - Ministra Rosa Weber

12. Voto - Ministro Luiz Fux

13. Voto - Ministro Gilmar Mendes

14. Voto - Ministra Cármen Lúcia

15. Oposição: Necessidade de criar uma norma específica no Legislativo e não reconhecimento da mora

16. Associação da ADO com a Teoria Geral do Estado



Integrantes

Abraão Adailton de Jesus Nobre - 202070117

Bárbara Riguete Guimarães Geraldo - 211065466

Christian Santana de Oliveira - 211065330

Davi de Macedo Fontinele - 211065090

Ingrid Rocha Pinho Sousa - 211065125

Jefferson Rodrigo Lopes da Silva - 211065386

Jonnathan Costa Maceió - 202039860

Júlia Rebeca de Paula de Souza - 211065401

Maria Clara Rodrigues Bevilaqua Carneiro - 211065180 

Maryana Oliveira Paulo- 211065528


O que é uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO)?

 

    O controle de constitucionalidade é um dispositivo legal utilizado para regularizar ou sanar uma inconformidade de uma lei infraconstitucional ou ato normativo ao texto constitucional. A inconstitucionalidade ocorre por ação ou por omissão (falta de ato ou lei específica que esclareça tal ponto). No caso de uma ação abstrata ou direta (pergunta-se ao órgão diretamente se tal questão litigiosa é inconstitucional), apenas o STF tem competência de julgamento, por isso o controle é concentrado nessa instância. Portanto, caso a inconstitucionalidade seja observada pelo órgão competente, esta possuirá efeito mandamental, ou seja, obriga-se ao destinatário real que edite ato normativo e que solucione tal obscuridade a prazo razoável.

    Ano de 2019, foi levada à apreciação pelo Supremo Tribunal Federal a ADO 26, que teve como fulcro a criminalização da homofobia - tema trabalhado pelo PLC 122/2006 ou Lei Alexandre Ivo, porém este foi arquivado – e da transfobia, tendo como base a omissão jurídica a cerca do tema, embora existisse a lei 7716 de 1989 que criminaliza o racismo no Brasil, portanto são temas semelhantes, passiveis de reconstrução por metáfora ou analogia, o que configurou na modificação e readaptação do conceito de “racismo” que antes referia-se somente a ataques contra a cor, doravante a casos específicos, passou a englobar novas modalidades de preconceito.

    A discriminação ou ofensa aos negros foi base para interpretação metafórica no notório caso de Sigfried Ellwenger, que foi acusado de injuria racial e teve seu Habeas corpus julgado pelo STF em 2003(HC 82.424). Negacionista do Holocausto e antissemita convicto, Ellwenger publicava livro e materiais jornalísticos que ofendia a comunidade judaica. Sua defesa focou efetivamente no princípio constitucional da liberdade de manifestação de pensamento,  na inobservância da lei para com publicações efetivamente antissemitas, sendo, então, inadequado pensar em crime de raça as ofensas aos judeus, pois judeus não poderia ser considerado raça. Dessa forma o Habeas Corpus que foi levado a debate ao STF valeria integralmente, já que suas publicações eram do ano de 1990, enquanto que seu processo já ocorreu 10 anos depois, e desse modo, prescreveria, caso o crime não fosse vinculado à Lei de Racismo, cujo crime é imprescritível. 

    O Habeas Corpus, no entanto, foi recusado. Os Ministros entenderam que, no caso, a conduta do paciente, consistente em publicação de livros de conteúdo antissemita, foi explícita, revelando manifesto dolo, vez que baseou-se na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. Dessa forma, a discriminação cometida, que seria deliberada e dirigida especificamente contra os judeus, configura ato ilícito de prática de racismo, com as consequências gravosas que o acompanham.

    Posteriormente, foi protocolado, pela até então deputada Iara Bernardi, o PLC 122/2006, também denominado “Lei Alexandre Ivo” – jovem brutalmente agredido e morto por homofobia -   foi aprovada pela Câmara dos Deputados, foi, porém, engavetado e arquivado pelo senado, principalmente pela bancada evangélica do congresso, sob o argumento de que a criminalização do discurso ofensivo aos LGBTQIA+ configuraria um ataque à liberdade religiosa.

Necessidade da criação de uma lei específica de amparo às causas LGBTQIAP+

 

Segundo a GGB, um homossexual é morto a cada 28h por conta da homofobia, incluindo assassinatos e suicídios, também o resultado de várias pesquisas dos grupos Transgender Europe e Trans Respect v. Transphobia Worldwide,. mostra que é o país que mais mata pessoas transgêneras, em 2012 e 2013 concentrou metade dos assassinatos de transgêneros do mundo. O STF reconhece que é necessário a criação dessas leis e o Supremo equipara a homofobia e a transfobia aos dispositivos da lei n° 7716, que busca considerar como discriminação e preconceito tais condutas, com pena de um a três anos, além de multa, com responsabilização civil e penal.

Com base nisso, o Estado deve controlar a temporalidade dos indivíduos, passado, presente e futuro. Na maioria das vezes, o cenário brasileiro nega o direito da contemporaneidade a esses grupos minoritários, que se denomina alocronismo (Alo é um prefixo de origem grega que corresponde a um estado anormal, diferente. Cronismo significa tempo. Ou seja, são tempos diferentes). Para combater esse fato, houve um projeto em busca da proteção das minorias (Projeto de lei n° 122), mas não logrou êxito em sua aprovação. No entanto, apesar de ser tratar de uma minoria comparado aos casais heteroafetivos, já há uma atuação significante observada, pois de acordo com o IBGE possuem quantidade suficiente para pertencerem ao ordenamento jurídico e dele receberem todos os direitos merecidos, como o cuidado, respeito e proteção, características da democracia do cuidado, no qual, o Estado visa realizar políticas públicas a favor do cuidado desses grupos.

Apesar da criação de leis que desincentivem a prática da homofobia e transfobia, a sociedade brasileira ainda é arraigada por uma cultura patriarcal de grande maioria cristã. Esse panorama traz uma espécie de estigmatização e preconceitos acerca dos direitos dos LBGT’s, ou seja, mesmo que o ordenamento jurídico coíba penalmente tais atos, a sociedade brasileira em si ainda mantêm-se atrelada à esses valores, os quais são destrutivos ao pluralismo da coletividade e ao Estado Democrático de Direito.

 A sociedade se modifica constantemente com o decorrer do tempo, questões que não eram tratadas ou discutidas no passado brasileiro por serem moralmente repudiadas, passam cada vez mais a compor o rol de reivindicações dos grupos minoritários como os LGBT’s, devido a diversos fatores socioculturais de libertação desses indivíduos. Em decorrência das mudanças, o ordenamento jurídico passa rapidamente a estar desatualizado, e há a necessidade da renovação de leis ou a criação de outras novas para atender aos anseios de novos grupos sociais que hão de surgir no desentrelaçar do tempo. Logo, a justiça que se apresenta no presente, não deve ser baseada em uma ordem 100% estática e universal (jusnaturalismo), mas sim, ser constantemente suscetível às mudanças (positivismo jurídico), a qual, não há como reconhecer plenamente o direito ao longo do tempo e do espaço, segundo uma visão hegeliana do Direito.

Não se mostra compatível com a Constituição Cidadã de 1988, o não amparo aos LGBT’s, como exemplo as práticas de discriminação, desrespeito e preconceito contra tais grupos. O STF deve atuar como o guardião último e aplicador da Constituição, e deve de fato realizar tais mudanças de interpretações quando necessário. Baseado no pressuposto de que: “Todo cidadão tem que exercer seu poder de escolha”. Esse Direito deve ser garantido pelos artigos 1°,3° e 5° da Constituição, sem qualquer tipo de juízo de valor atrelado, pois também, o Brasil é um país laico.

 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

- a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (Vide Lei nº 13.874, de 2019)

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição .

 

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

- construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. (...)

Um dos casos mais infelizes de homofobia e incentivo à violência desse grupo no Brasil, foi realizado pelo então Presidente da República em seu mandato de Deputado Federal em 2010, onde foi dito que: "O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um 'couro', ele muda o comportamento dele. Olha, eu vejo muita gente por aí dizendo: ainda bem que eu levei umas palmadas, meu pai me ensinou a ser homem”. O que mostra um total atraso aos Direitos dos LGBT’s, e que retrata um pensamento arcaico de uma grande parte da sociedade brasileira personificada nas falas desse indivíduo. 

  Voltando ao passado histórico brasileiro da colonização, a discriminação sobre pessoas cuja orientação sexual ou identidade de gênero fugisse do “padrão” imposto, mostrou-se muito evidente, enquanto estas pessoas eram perseguidas e mortas devido a suas características pessoais. Frente a este cenário, o Dr. Adilson José Moreira considera o fenômeno da LGBTfobia como integrador estrutural do país, que é explicitada em sua obra “O que é discriminação?”.

    Durante o processo histórico, o Brasil foi um dos primeiros países americanos a descriminalizar relações entre pessoas do mesmo gênero, que ocorreu em 1980 por meio do Código Penal do Brasil Império. Apesar desta decisão, os preconceitos no meio social não deixaram de ser uma realidade na vida dos indivíduos LGBTQIAP+, visto que no Brasil o “homossexualismo” ainda era considerado como doença, justamente por ser utilizado o sufixo “ismo” na palavra o que pode ser desmentido por esse vídeo do canal do Pirulla (biólogo de formação): https://www.youtube.com/watch?v=Gn0R-gb9SMc&t=1013s

Apesar de, até na Constituição de 88, não haver reconhecimento explícito dos direitos dos grupos LGBTQIAP+, havia, de forma indireta, a garantia dos direitos individuais. A pequenos passos, os grupos LGBTQIAP+ conquistam, cada vez mais, direitos a favor da proteção de suas vivências enquanto "Queer". Em 2013, por exemplo, por meio da resolução n° 175, do CNJ, é inibido às autoridades de proibirem a união civil entre pessoas do mesmo gênero. Além disso, em 2018, o STF assegurou a possibilidade de alteração do nome e gênero no registro civil sem, necessariamente, o indivíduo ser submetido a algum procedimento cirúrgico de redesignação sexual, por meio da ADI n° 4275.

As duas conquistas mais recentes aconteceram, respectivamente, nos anos de 2019 e 2020. Em 2019, a ADO n° 26, viabilizada pelo STF, assentiu com a possibilidade de atos discriminatórios homofóbicos e transfóbicos, serem punidos como racismo, garantido pela lei n° 7.716/1989, enquanto se espera uma lei específica para esta categoria. Já em 2020, o STF, por meio da ADI n° 5543, acatou com a permissão de homens homoafetivos ou bissexuais poderem realizar doação de sangue, dando fim à restrição que havia desde 1991.

Nota-se que o Estado brasileiro promoveu, durante um certo período, um cenário que negligenciou assistência ao grupo dos LGBTQIAP+, e que por consequência, tiveram que lutar pelo reconhecimento de direitos básicos para que se viva com segurança na sociedade. Além disso, os avanços conquistados até o momento, por vezes demonstram-se serem insuficientes, visto que há uma falha na proteção adequada deste grupo em situação vulnerável. Devido a essa ineficiência, o STF precisou intervir e agir por não haver leis específicas e essenciais sobre os direitos LGBTQIAP+.

Não restrição de exercício da liberdade religiosa, desde que não ocorra discurso de ódio

               
        O tipo penal descrito na Lei 7.716/89 e suas alterações descrevem precisamente o que é considerado crime e o que pode levar uma pessoa a ser condenada, se a motivação partir de discriminação ou preconceito racial, de etnia, religião ou nacionalidade.  
        Em sua decisão, o plenário do STF reconheceu que há uma omissão do Congresso Nacional na deliberação de norma sobre a matéria, crimes de homofobia e transfobia, sendo este o principal fundamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) discutida nesse trabalho, visto que se existisse lei sobre isso não haveria necessidade de questionamento e deliberação junto ao STF.  
        Oito dos onze ministros votaram pela aplicação do que já estava postulado na lei de racismo para casos de homofobia, dessa forma, certas ações (negar atendimento, impedir acesso, recusar emprego) seriam enquadradas como crimes se praticados por conta da orientação sexual da vítima, condenável a três anos de prisão e pagamento multa, sendo que a pena pode chegar até cinco anos se a prática homofóbica for divulgada na internet. As sanções são as mesmas previstas no crime de racismo.   
        De forma simples, é como se o STF mudasse o artigo primeiro da Lei 7716/89, acrescentando: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional e contra homossexual ou transexual”.  
        Destaca-se que a repressão contra práticas homofóbicas não fere o princípio da liberdade religiosa. As igrejas continuam podendo ensinar sobre o pecado à luz dos seus fundamentos teológicos, desde que não ocorra disseminação de discurso de ódio, incitação à violência. Por exemplo, um pastor pode condenar a homossexualidade como pecado desde que não incite violência contra esses grupos. A reprovação da conduta homossexual ou transexual pela igreja como pecado não se torna crime, sob pena de claro atentado a um princípio e a um dispositivo constitucional: liberdade religiosa (Art. 5º, inciso VI, CF/88). 
        Dessa forma, a decisão do STF não pode restringir tampouco afetar a questão da liberdade religiosa. Torna-se relevante destacar o que a decisão do STF declarou explicitamente quanto ao respeito às convicções religiosas e à expressão da fé na ADO 26:  
“A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professa, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”.  
        As críticas à prática homossexual realizadas por religiosos no contexto de seus templos estariam, a partir dessas considerações, resguardadas pelo princípio da liberdade religiosa, o que é excelente, mas há de se questionar também como seriam protegidas discursos críticos não-violento de cunho ético, biológico, filosóficos ou de qualquer natureza que não a teológica. As ações humanas são passíveis de críticas sem que ocorra um ataque pessoal ao praticante do fato social que está em análise que, no caso, é a relação homoafetiva. A expressão de tais discursos é uma garantia prevista na CF-88, artigo 5º, inciso IX  “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Dessa forma, a defesa dessa crítica não-violenta às ações homossexuais e não o indivíduo homossexual em si configurava uma polêmica questão de liberdade de expressão.
        A Corte, ainda tratando sobre o tema da liberdade de expressão, destacou que a manifestação de opiniões geradoras de discordância não indicam o cometimento de crime em si, sendo imprescindível que seja assegurado o respeito ao pluralismo e à tolerância. Explicitamente no documento, está posto:  
“O verdadeiro sentido da proteção constitucional à liberdade de expressão consiste não apenas em garantir o direito daqueles que pensam como nós, mas, igualmente, em proteger o direito dos que sustentam ideias (mesmo que se cuide de ideias ou de manifestações religiosas) que causem discordância ou que provoquem, até mesmo, o repúdio por parte da maioria existente em uma dada coletividade. O caso “United States v. Schwimmer” (279 U.S. 644, 1929): o célebre voto vencido (“dissenting opinion”) do Justice OLIVER WENDELL HOLMES JR. É por isso que se impõe construir espaços de liberdade, em tudo compatíveis com o sentido democrático que anima nossas instituições políticas, jurídicas e sociais, para que o pensamento – e, particularmente o pensamento religioso – não seja reprimido e, o que se mostra fundamental, para que as ideias, especialmente as de natureza confessional, possam florescer, sem indevidas restrições, em um ambiente de plena tolerância, que, longe de sufocar opiniões divergentes, legitime a instauração do dissenso e viabilize, pelo conteúdo argumentativo do discurso fundado em convicções antagônicas, a concretização de valores essenciais à configuração do Estado Democrático de Direito: o respeito ao pluralismo e à tolerância”.  
           Essa atenção especial da Corte em resguardar a liberdade religiosa e a liberdade de expressão dialoga com os preceitos da Democracia liberal do filósofo norte-americano John Rawls, que postulava o desenho estatal feito a partir de um “véu da ignorância”. 
           Há evidentemente um cuidado para que a decisão a ADO seja a mais satisfatória possível tanto para o religioso que deseja a liberdade de expressão e consequente pleno exercício da sua fé quanto para a comunidade LGBTQIA+ e suas reinvindicações de resguarde a segurança física e bem-estar psicológico, conservando as bases sociais do autorrespeito.
        

Relação entre crimes contra a comunidade LGBT e a Lei de Racismo


 

A ação ocorreu em julgamento do Supremo Tribunal Federal dividido em duas ações: a ADO 26 e MI 4.733. A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 26, relatada por Celso de Mello, foi um pedido feito pelo PPS – Partido Popular Socialista para que o STF declarasse mora legislativa, baseada “na tese de que a inércia do Congresso Nacional em estabelecer os tipos penais da homofobia e da transfobia seria inconstitucional por (i) violar mandado expresso de criminalização previsto no art. 5º, XLII, da CF/88; (ii) por descumprir o dever de elaboração de legislação criminal que puna o racismo e, igualmente, o racismo homofóbico e transfóbico.” (Voto Min. Gilmar Mendes, p. 1) 

Transcorridas mais de duas décadas desde a promulgação da Constituição de 1988, sobre essa questão existiam apenas projetos de lei, todos ainda em trâmite no Congresso Nacional e no Senado. A morosidade com que o parlamento tratou da criação de uma legislação criminal específica contra os atos homotransfóbicos foi vista pelo Ministro Luís Roberto Barroso como falta em relação ao inequívoco dever constitucional de legislar, o que configura a existência de omissão inconstitucional pelo legislador ordinário brasileiro, característica do estado de mora legislativa ou inconstitucional.  

Já o Mandado de Injunção (MI) n. 4733, de autoria da ABLGT - Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros e relatado pelo ministro Edson Fachin, solicitou que, diante do caso de mora legislativa, homofobia e transfobia fossem enquadradas na Lei n° 7.716/1898, que configura racismo como crime, até que houvesse atuação do Congresso Nacional em legislar sobre a matéria. A decisão também pretendia a equiparação da homofobia e transfobia como motivo torpe qualificador de homicídio, no caso de homicídio doloso. (código penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”)  

Foi enfatizado durante a decisão que o conceito de racismo abrangia várias dimensões para além de aspectos fenotípicos, físicos e\ou biológicos, podendo ser resumido a: prática que busca legitimar a desigualdade e justificar a dominação de um grupo sobre outro através da inferiorização e exclusão jurídica-política-social.    

Sustentando-se na premissa de que a Constituição Federal determina que todos são iguais perante a lei e que o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade são invioláveis (BRASIL, 1988), as práticas de homofobia e transfobia deviam ser configuradas como crimes passíveis de punição.    

Assim, as práticas de homotransfóbia passaram a ser qualificadas como genêro de racismo, uma vez que as práticas contra o grupo minoritário LGBTQIA+ visavam a inferiorização, segregação e exclusão, violando direitos fundamentais de liberdade e igualdade garantidos pela Constituição Federal.    

Dessa forma, por voto da maioria (8x3), “os crimes previstos pela lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passaram a abarcar as condutas homofóbicas, isto é, os atos de discriminação em virtude de orientação sexual” (ADO26 - p.105). O julgamento contou com votos dos seguintes ministros: Celso de Mello (relator da ação), Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Dias Toffoli. Além da sustentação oral das partes, que contou com advogados da comunidade LGBT. 

Voto - Ministro Celso de Mello

     



Relator da referida ADO, Celso de Mello é o primeiro a conferir o voto. Em seu discurso, ele defende ferrenhamente a proteção das minorias e, portanto, a inclusão da comunidade LGBTQ+ na Lei do Racismo em casos de homotransfobia, pois se trata de valoração negativa a um grupo humano. Nesse viés, é notória a função contramajoritária que o judiciário possui no constitucionalismo democrático de atuar em nome das minorias numéricas e vulneráveis com o objetivo de resguardar seus direitos.

Essa função se difere bastante com o trabalho das funções legislativas e executivas, que são poderes eleitos e agem de acordo com o consenso da maioria, o qual nem sempre é o mais justo e abrangente com as diferenças. Tal aspecto é enfatizado pelo então decano do Supremo Tribunal Federal quando ele diz que as omissões inconstitucionais, principalmente as do legislativo, não devem ser toleradas e que esse contínuo desprestígio à Constituição representa um dos mais tormentosos aspectos do processo de desvalorização funcional da Lei Fundamental. (Voto Min. Celso de Mello, p. 44). Isso afeta a busca da felicidade como princípio constitucional fundante da pessoa humana.

O voto do Ministro se dividiu em 18 capítulos, contidos em 155 páginas, com o intuito de declarar a mora inconstitucional do Congresso e criminalizar a homotransfobia. Deve-se, então, seguir a interpretação conforme a Constituição até novas leis serem criadas. A linha argumentativa dessa defesa se baseou em explicar o tratamento dado a homossexuais e transexuais ao longo da história, repleta de períodos contínuos de repressão, intolerâncias, violências e preconceitos em graves proporções. Nesse ponto, ele aponta a indiferença do Congresso com a comunidade LGBTQ+, a qual sofre graves ofensas a seus direitos fundamentais. Ademais, um ponto forte da discussão foi a compreensão do porquê da homofobia e transfobia estarem incluídas na prática do racismo, mais especificamente, o que se conhece como racismo social.   

Desse modo, Mello afirma que o racismo não é concebido apenas pelo critério da cor da pele e da raça, mas por aspectos histórico-culturais de convivência em que se nega a dignidade humana a um grupo, fato que infelizmente é recorrente na cotidianidade da comunidade LGBTQ+. Esse grupo, devido a sua orientação sexual e identidade de gênero, apresenta absoluta vulnerabilidade e sofre práticas discriminatórias. Esses fatos criam a necessidade de expandir o conceito do senso comum de racismo. Tendo isso em mente, o Ministro profere a seguinte definição: 

“[...] o racismo nada mais é do que uma ideologia, fundada em critérios pseudo-científicos, que busca justificar a prática da discriminação e da exclusão, refletindo a distorcida visão de mundo de quem busca construir, de modo arbitrário, hierarquias artificialmente apoiadas em suposta hegemonia de um certo grupo de pessoas sobre os demais existentes nas diversas formações sociais.”. (Ibidem, p. 77-78). 

Outro aspecto discutido foi a liberdade de pensamento, uma vez que entra em questão a controvérsia da restrição de livre manifestação de pensamento religioso. Celso de Mello, nesse sentido, afirma que a adoção da criminalização da homofobia não impede a liberdade de crença, apenas é um freio para as práticas de descriminação e violência que a comunidade LGBT vem sofrendo. Ao proteger o grupo, visa-se o respeito ao pluralismo e à tolerância, características essenciais do Estado Democrático de Direito. (Ibidem, p. 115) 

Voto - Ministro Edson Fachin



Edson Fachin, relator da MI 4733, também se posiciona a favor em reconhecer a omissão inconstitucional do Congresso Nacional e, consequentemente, em aplicar a Lei n° 7.716/1989 em casos de homotransfobia, até que novas medidas legislativas sejam criadas a respeito. Além de possuir importantes premissas, o voto do Ministro é constituído por bases constitucionais, doutrinárias e jurisdicionais.

Primeiramente, o discurso trata de diferenciar a identidade de gênero de opção sexual. A identidade de gênero, que abrange os transgêneros, é compreendida pela Corte Internacional de Direitos Humanos como "a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, o qual pode ou não corresponder com o sexo designado no momento do nascimento" (Corte Interamericana de Direitos Humanos, OC-24/17, 24.11.2017, par. 32.f., tradução livre apud FACHIN, pág. 10). Já a opção sexual trata-se de "atração emocional, afetiva e sexual por pessoa de um gênero diferente do seu, ou do mesmo gênero ou de mais um gênero, assim como a relações íntimas e/ ou sexuais com essas pessoas". (Voto Min. Edson Fachin, p. 10) Essas definições são importantes para entender as diferenciações existentes na comunidade, as quais devem ser protegidas pela Constituição. 

Após essas considerações iniciais, a constatação da mora inconstitucional do Congresso Nacional se dá com dados revelados pelos amici curiae e as próprias fontes do Ministro para provar que há violações de direitos contra a comunidade LGBTQ+, o que reforça o cenário de desigualdade e invisibilidade das minorias no País.  

Para o relator da MI 4733, no art. 5º, XLI, da CRFB, há um mandado específico de criminalização, pois existem penalizações a condutas fora do âmbito do racismo étnico na jurisprudência do STF, como no caso Ellwanger (HC 82.424/RS) e na ADI 4.424 sob relatoria do Ministro Marco Aurélio, e também de organizações internacionais de direitos. Fachin afirma que, em determinadas situações, "a proteção dos direitos fundamentais pode implicar também a criação de tipos penais próprios". (Voto Min. Edson Fachin, p. 14) Por fim, destaca a importância de se assegurar os princípios da dignidade humana e da igualdade, os quais se encontram em situação crítica em grupos minoritários, pois grande parte da sociedade não os reconhece como iguais. 

Voto - Ministro Alexandre de Moraes


Assim como os votos tidos até agora, o Ministro Alexandre de Moraes concorda com a aplicação da Lei do Racismo nos casos de homotransfobia, por haver muitos casos de violência física, discursos de ódio, assassinatos e discriminação a esses grupos, o que é uma ofensa aos direitos e liberdades fundamentais. (Voto Min. Alexandre de Moraes, p. 12) A problemática é exponenciada quando se constata que os LGBTs são o único grupo minoritário vulnerável que não são protegidos por lei específica no Congresso Nacional.

Nesse sentido, para contextualizar a situação e necessidade da uma lei penal, o Ministro traz alguns dados alarmantes, tais como: "aumento de 30%, em 2017 em relação ao ano anterior, dos homicídios contra o grupo LGBT; e o fato do número de transgêneros mortos entre 2016 e 2017 demonstrar que o Brasil é o primeiro colocado no “ranking” mundial." (Voto Min. Alexandre de Moraes, pp. 13 - 14) Além disso, diversos amici curiae colaboram com argumentos e pedidos de reconhecimento da dignidade humana, o que evidencia a falta de políticas públicas e legislações estaduais sobre o tema. (Ibidem, p. 21) 

Em seguida, Moraes destaca a importância da interpretação lógica e teleológica das medidas constitucionais, em que o judiciário tem a possibilidade de editar leis penais em caso de lacuna. Dessa forma, foi possível a criação de medidas protetivas para consumidores, crianças, idosos e pessoas com deficiência. Nessa lógica, faz-se mais que necessário, portanto, a proteção de homossexuais e transgêneros.  

Por último, é salientada, assim como no voto de Celso de Mello, a diferenciação da atuação do judiciário, que procura resguardar os direitos das minorias, e o legislativo, em consonância com a maioria da sociedade política. Logo, é importante a atividade hermenêutica no Estado Democrático de Direito como forma de estabelecer aplicabilidade e efetividade aos direitos humanos. Portanto, o Ministro conclui com a seguinte afirmação: 

"A Lei n° 7.716/1989 deve ser interpretada em conformidade com o texto constitucional que, expressamente, veda não somente preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade; mas estende a proibição a quaisquer outras formas de discriminação." (Ibidem, p. 42)  

Voto - Ministro Luís Roberto Barroso



Assim como os ministros anteriores, Barroso critica a mora do Congresso Nacional e concorda com a aplicação da Lei do Racismo. Inicialmente, ele conceitua a homofobia que utilizará no voto como "violência física ou psicológica contra uma pessoa, respectivamente em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero, manifestando-se em agressões, ofensas e atos discriminatórios". (Voto Min. Luís Roberto Barroso, p. 10) Nesse sentido, ele observa que o número de casos de homofobia e transfobia no País são expressivos.

Segundo o relatório "Violência LGBTFóbicas no Brasil: dados de Violência", disponibilizada pelo Ministério dos Direitos Humanos, houve 3.859 denúncias feitas pela comunidade LGBTI+ em 2015 e 2016. Lembrando que esses dados são apenas da criminalidade aparente. Ademais, há casos notórios nos meios de comunicação, como o assassinato de Dandara do Santos e Alexandre Ivo, brutalmente torturados por sua orientação sexual e ideologia de gênero. (Ibidem, p. 11) Portanto, conclui que é necessária uma resposta do Estado e do Direito ao grupo descriminado perante esses acontecimentos. 

Em termos mais teóricos, é importante mencionar que o legislativo atua segundo o ato de vontade e o judiciário segundo ato de razão, o que permite a decisão da ADO. Debate-se, também, a importância da defesa dos direitos fundamentais e a integridade física e psíquica, além de definir o papel da corte constitucional nos estados democráticos: ser contramajoritário, representativo e iluminista. Ou seja, trata-se, respectivamente, da capacidade de invalidar atos legislativos quando se contraria a Constituição e não se protegem os direitos fundamentais (mesmo contra a vontade das maiorias); amparar as demandas sociais não representadas na Constituição; e promover avanços na estrutura social. Esse último papel, o iluminista, é o que se tem no presente caso, pois visa-se transformar a história, assim como ocorreu no caso Brown vs Board of Education, que proibiu a segregação racial em escolas públicas nos Estados Unidos no início da década de 1950. (Ibidem, p. 15 - 16)  

Outro aspecto da explicação é o ponto de vista jurídico, em que há de comprovar a omissão constitucional e se é viável a inclusão na Lei n° 7.716/1989. Na Constituição Federal, no art. 5º, há a seguinte constatação: "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais". Logo, pelo fato de ser um problema que afeta os direitos fundamentais, a homofobia e a transfobia necessitam de amparo jurídico. O que não fica claro com o texto do artigo é a natureza da ação de punir, se é em sentido criminal ou administrativo. Nesse ponto, se encontra a omissão da Constituição. Tendo isso em vista, Barroso apresenta três fatores para se enquadrar na esfera criminal. Primeiramente, em face da grande barbárie cometida a esses grupos, necessita-se a proteção da vida. Ademais, há outras discriminações protegidas pelo direito penal, como a descriminação religiosa. Por fim, a punição administrativa nesse caso não é suficiente, pois diversos estados punem dessa forma e não conseguem conter as situações de violência. 

Para explicar a inclusão da comunidade LGBT na Lei do Racismo, Barroso contextualiza com o paradigmático caso Ellwanger, em que se ampliou o entendimento da vedação constitucional do racismo para punir outros tipos de preconceito que afetam os direitos fundamentais. Isso serve de jurisprudência para julgar os casos de homotransfobia. Além disso, devido a lentidão do legislativo, a falta de interesse com esses casos e o fato da problemática ser um ato discriminatório, o Ministro acredita ser melhor a inclusão dessas condutas na Lei de Racismo do que esperar um novo projeto normativo ser proposto.  

Por fim, ele dedica os últimos momentos de sua fala para o respeito ao sentimento religioso e sua liberdade de crença. Enfatiza-se, portanto, que essa mudança constitucional não vai acabar com a liberdade de expressão contrária à relação homo afetiva, pois a criminalização está relacionada à falta de respeito aos direitos fundamentais e à proteção de uma comunidade que está sendo marginalizada. 

Apresentação